Opção binária São Paulo

Formas de prestação de serviços públicos.


O serviço público constitui atividade prestacional, assumindo o Estado o dever de garantir a oferta de certas materialidades em favor da coletividade. Nessa perspectiva, embora a prestação integrada na estrutura orgânica da Administração Indireta seja possível, fato é que ela não é prestigiada. As especificidades das atividades usualmente conduzem à descentralização na prestação dos serviços públicos. Esse processo pode se dar levando em conta pessoas que integram a própria Administração Indireta, ainda que constituídas e organizadas sob roupagem privada. Nesses casos há um arranjo colaborativo entre figuras administrativas. O mesmo se dá quando se organizam esquemas multi-federativos, com a peculiaridade nessa hipótese de ter de se articularem mais de uma pessoa administrativa. Por outro lado, há ainda a delegação da gestão da prestação para a iniciativa privada que nestas hipóteses explorará uma atividade pública com o intuito de lucro, presentando o Estado perante a coletividade. Nesses casos, a titularidade da atividade persiste sendo pública, o que garante ao Estado as atribuições jurídicas necessárias para determinar em que condições a atividade deve ser prestado. Em contrapartida o particular tem direito à proteção de suas expectativas patrimoniais legítimas. Os instrumentos para tanto são a concessão e a permissão, que transferem mediante licitação, a atividade pública à exploração privada.


1. O serviço público como atividade prestacional.


A boa lógica manda que antes de cogitar sobre os modos de sua prestação (objeto imediato dessas considerações), se tenha em mente o que vem a ser serviço público. Logo, ainda que evidentemente sem a menor pretensão de profundidade, cumpre dar algum lastro ao conceito de serviço público. 1 O fio orientador da exposição, dentre os vários vértices possíveis, será aquele que se refere ao modo de prestação dessas atividades. Assim, deixar-se-ão de lado as discussões teóricas relativas ao conceito para indicar sua feição essencial no que se refere às maneiras pelas quais essa atividade pode ser disponibilizada em favor da sociedade.


E o ponto de partida para tanto é indicar a natureza prestacional dos serviços públicos. Em uma enunciação tradicional em nossa doutrina: “Serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material fruível diretamente pelos administrados, prestada pelo Estado ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de direito público – portanto consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais – instituído pelo Estado em favor dos interesses que houver definido como próprios no sistema normativo”. 2.


Como se nota de pronto, serviço público diz respeito à faceta prestacional do Estado, caracterizando-se por ser uma técnica jurídica que vincula o Estado à prestação de comodidades diretamente à coletividade . 3 Nessa perspectiva, o serviço público se caracteriza como uma obrigação que o ordenamento jurídico impõe ao Estado de assegurar certas prestações à coletividade, exigindo um especial compromisso da ordem jurídica com sua disponibilização à sociedade. Com isto, resolvem-se dois problemas centrais para a operacionalidade do conceito. Como registra Pedro Gonçalves, “[c]om referência ao conceito de prestação, o serviço público passava a ser concebido como uma actividade subjectivamente administrativa, distinta de outros tipos de actuação da Administração. Ou seja, o conceito abrangia apenas tarefas da Administração (e não actividades dos particulares); por outro lado, não abrangia todas as tarefas da Administração”. 4 E, de fato, ao encarecer o caráter prestacional de serviço público, está a se excluir do âmbito do conceito prestações jurídicas – pois cogita-se de materialidades disponibilizadas à sociedade – e está a se garantir o seu caráter eminentemente público, excluindo atividades privadas que se destinam a atender interesses gerais. Assim, o primeiro elemento a ser destacado é a natureza de atividade de responsabilidade do Estado que integra a ideia de serviço público .


Por outro lado, nada obstante não se poder adotar um conceito monolítico acerca do regime de serviço público (pois cada qual representa concretamente uma realidade juridicamente complexa, sujeita a normas e princípios próprios), fato é que o modo de prestação dessas atividades apresenta peculiaridades que lhes tornam distintas das atividades puramente privadas. Aí afirmar-se a existência de um regime próprio no que se refere aos serviços públicos, que consagra atributos públicos. E embora o espaço de distinção público/privado seja sujeito a um redimensionamento constante, pois já não se faz mais clara a distinção entre atividades particulares e serviços públicos, 5 fato é que a distinção persiste na precisa medida em que os serviços públicos criam, quando menos, um dever de prestação em favor da coletividade (e, portanto, de responsabilidade do Estado), que não existe nas atividades privadas, que se regem pela livre iniciativa. Como reflexo disso, tem-se a possibilidade de se criarem regras especiais em favor dos serviços públicos que seriam estranhos à lógica da atuação privada, como ocorre nos casos de monopólios, cobranças compulsórias, metas de universalização, controle de preços, etc.


Em suma: como o serviço público é uma atividade de responsabilidade do Estado, o modo de prestação dessas atividades pressupõe incidência das regras próprias do agir público, que se destinam a assegurar sua efetiva oferta. Isso implica um corpo de sujeições que se coloca ao agir estatal (derivados da ideia de função), assim como permite o apelo a recursos de autoridade.


Nessa linha, percebe-se que o serviço público é um título jurídico que cria um dever para o Estado, que se caracteriza pela necessidade de implementar as medidas úteis para desenvolver, concretamente, materialidades em prol da sociedade. Logo, mais do que uma competência a permitir que o Estado atue, as normas que instituem serviços públicos demandam a atuação do Estado, sendo a sua omissão juridicamente censurável. É dizer, os serviços públicos só existem em sendo considerados concretamente; isto é, levando em consideração o modo pelo qual efetivamente são ofertados à coletividade .


Contudo, a experiência registra que raramente essa atividade é desempenhada diretamente pela Administração Direta, sendo usual sua atribuição a outras pessoas jurídicas, sejam integrantes da Administração, sejam particulares. As contingências associadas à gestão da atividade, usualmente, conduzem, mercê da necessidade de especialização, à delegação dessas atividades para a centros dotados de autonomia, cuja missão institucional é desempenhar essas atividades em nome e por conta do Estado. Assim, nada obstante o Estado titularize a competência de responder pelos serviços públicos, fato é que raramente isso é feito de modo direto.


Alinhadas as coisas, a grande questão que se coloca ao se chegar a esse ponto da discussão é: como deve o Estado se desincumbir dessa responsabilidade? Deve ele agir diretamente, na medida em que o serviço público é uma atividade inerente à própria tecitura da soberania? Ou, em vista do elemento econômico subjacente ao fato de se ter uma atividade, admite-se o recurso à gestão privada?


Com efeito, a resposta à questão não é una. Isso porque há diferentes configurações acerca dos serviços públicos. Há atividades que por decisão constitucional devem ser necessariamente prestadas diretamente pelo Estado, como ocorre com o serviço postal (art. 21, X da CF). Há outras atividades que devem ser prestadas pelo Estado, mas admite-se, todavia, a iniciativa privada em paralelo aos serviços estatais. É o que acontece com a saúde e a educação (arts. 197 e 206, III da CF, respectivamente). Há ainda atividades públicas que devem necessariamente ser exploradas por particulares, como acontece com o serviço notarial (art. 226 da CF). E há diversas outras atividades, que podem ser prestadas diretamente ou ainda delegadas à iniciativa privada (que constituem a generalidade dos casos).


Há, portanto, diferentes situações, cada qual portadora de uma lógica própria. Enfim, a pretensão de achar uma explicação unívoca e abstrata se faz com tamanha distância da realidade que perde qualquer valor operacional. Desse modo, o recorte aqui apresentado foca-se em abordar os serviços públicos que não estão sujeitos a um tratamento juridicamente peculiar. Cuidam-se das atividades que se enquadram na dinâmica do art. 175 da Constituição, que estipula que compete ao Estado prestar serviços públicos, sendo eles passíveis, contudo, de delegação.


Considerando a variedade de possibilidades, é necessário delimitar o tema. O presente verbete estudará os modos de prestação a partir da seguinte clivagem: prestação das atividades por pessoas administrativas, ou seja, sob execução controlada pelo Estado e prestação por particulares, em que um sujeito privado se torna veículo de concretização de interesses públicos . 6 Parece ser este o corte mais relevante para colocar a claro as diferenças de regime jurídico, que são o objeto de análise imediata do jurista.


2. Prestação indireta e legalidade.


Antes, todavia, de estudar os modos de prestação do serviço público integrados à estrutura administrativa ou delegados à iniciativa privada, é preciso destacar que em ambos os casos o processo de gestão de serviços públicos é organizado a partir das leis. Com efeito, todo o fenômeno de organização administrativa é decorrência da legalidade.


A princípio, a prestação de serviços públicos obedece a uma clivagem binária. Há a prestação direta, levada a efeito pela própria Administração, mediante a atuação de seus órgãos, e há a transferência da gestão a um terceiro, que pode ser outra pessoa integrada na estrutura da Administração ou um particular.


Como visto acima, a atuação direta é excepcional, pois há uma inegável tendência à especialização no seio da Administração que não recomenda que a atividade de gestão de um serviço seja posta a cargo da Administração Direta.


Logo, em termos concretos, os problemas atinentes à prestação de serviços públicos envolvem a transferência da atividade para um terceiro, que pode ser um ente que está sujeito à estrutura do próprio Estado ou ainda a um particular, que a explorará com intuito de lucro . Nessa perspectiva, nos casos de execução indireta, está em causa a existência de duas pessoas jurídicas, como é próprio de todo processo de descentralização em que há dois centros de imputação jurídica. Como sintetiza Celso Antônio Bandeira de Mello – “[h]á prestação descentralizada quando o serviço ou o exercício dele se transfere para outra pessoa jurídica; portanto, para entidade distinta do Estado, um alter em relação a ele”. 7 E esse processo de transferência da prestação é feito obedecendo-se às exigências da legalidade.


Há neste processo de descentralização um escalonamento normativo a ser considerado. Por um lado, há um ato normativo (usualmente, a própria Constituição) que imputa determinada atividade à responsabilidade de uma pessoa política. 8 Tal atribuição habilita a pessoa a quem foi imputado o serviço a explorá-lo diretamente. Por outro, caso se pretenda transferir a gestão da atividade, deve haver um ato normativo secundário que viabiliza a transferência da competência original para um terceiro. A competência poderia ser transferida integralmente se a pessoa titular da delegação tiver personalidade equivalente à do Estado ( i.e. , tiver natureza autárquica), ou parcialmente, se a personalidade for privada.


Por seu turno, esse ato secundário pode ser de efeitos concretos, como ocorre no âmbito da distribuição dessa competência ao interno da própria estrutura administrativa (cf. art. 37, XIX, da CF). Ou pode se tratar de um título genérico e abstrato que estipule um modelo geral de transferência, como acontece, por exemplo, com a Lei de Concessões (Lei 8.987/1999) ou com a Lei de PPPs (11.079/2004), a ser integrado por um ato ou contrato que define concretamente as regras relativas à transferência. Em suma, no primeiro caso tem-se um processo de descentralização por especialização. Já no segundo, por colaboração.


Fica claro, portanto, que os problemas relativos à prestação indireta de serviços públicos, antes de mais nada, são questões de legalidade . Eles devem ser analisados, portanto, de acordo com a lei, que é capaz de dotar o tema de singularidades relevantes. Como demonstra a experiência concreta, o casuísmo desempenha um importante papel no que se refere à delegação de serviços públicos.


Por outro lado, importa destacar que há distinções substanciais entre a atribuição por lei da atividade a ente que integra a estrutura orgânica da Administração e a atribuição a um particular, alheio à esfera de influência direta do Executivo. Cumpre investigar as diferentes racionalidades subjacentes a ambos os fenômenos. 9.


3. A prestação de serviços públicos pela Administração indireta.


É conhecido o processo de especialização pelo qual passou, e passa, a Administração. O ocaso do Estado Liberal legou à Administração a assunção de diversas missões institucionais que escapavam completamente das categorias seminais do direito administrativo. 10 O resultado disto foi que a crescente complexidade das atribuições administrativas conduziu, em paralelo, a um processo de especialização no que se refere à organização subjetiva da Administração. Nessa perspectiva, a Administração Indireta robusteceu-se de modo a atender aos reclames de constante especialização da função administrativa.


Mais do que isso. A própria personalidade pública, típica do direito administrativo, passou a conviver com entes administrativos dotados de personalidade privada, especialmente vocacionados para gerir atividades com cunho comercial e industrial, assumidas pelo Estado.


Em suma, a complexidade das tarefas administrativas conduziu a uma série de mutações no perfil subjetivo da Administração Pública, que passou por um intensivo processo de desintegração do núcleo estatal de atividades públicas, que foram sendo transferidas para a Administração Indireta e para particulares.


Nesse contexto, a prestação de serviços públicos pela Administração integra-se habitualmente no seio da Administração Indireta. As exigências de gestão correlatas aos serviços públicos predicam a criação de estruturas autônomas que assumam sua prestação . Cuida-se de um processo de organização de competências públicas dentro da estrutura da Administração. Logo, nesses casos, a atividade ainda persiste sendo prestada pelo Estado, ainda que não mais pela Administração Direta. O que há de comum a todos os esquemas é que a concepção acerca do modo de execução do serviço e a implementação material dessas diretrizes continuam sendo integrados na estrutura do Estado . É dizer, o Estado é o formulador das diretrizes do serviço e o seu executor , embora usualmente essas duas atribuições sejam divididas entre pessoas administrativas distintas.


Deste modo, eventuais conflitos entre quem formula as diretrizes e quem as executa são adjudicados mediante técnicas que cuidam do próprio agir estatal, apelando usualmente ao princípio de hierarquia que organiza as relações administrativas. Nada obstante as pessoas jurídicas da Administração Indireta não se confundam com a Administração Direta, é certo afirmar que esta exerce uma capacidade de orientação e de controle sobre aquelas. 11.


A integração da atividade, portanto, no seio da Administração, configura uma técnica que mantém integrado no hemisfério público todos os ciclos inerentes à gestão do serviço público. E nada obstante essa técnica ser hoje menos importante do que foi no passado com os processos de desestatização implementados no Brasil, fato é que ainda importantes atividades são prestadas por empresas estatais que desempenham serviços públicos.


Por outro lado, ao adotar essa técnica o Estado deve levar a efeito os investimentos necessários para a prestação do serviço, 12 assim como assumir o risco correlato à exploração de uma atividade que muitas vezes tem natureza comercial ou industrial (sujeitando-se, portanto, às vicissitudes de mercado).


Assim, a intenção de manter uma atividade integrada no hemisfério público implica a concentração nas mãos do Estado de todos os riscos inerentes à exploração, além de atribuir a ele a necessidade de promover os investimentos correlatos à disponibilização dos serviços (ainda que o investimento possa ser recuperado por meio da cobrança de taxas ou tarifas). Logo, a opção de gerir a atividade mediante estruturas que se integram na Administração Pública não é neutra em termos concretos. Se, por um lado, aumenta-se a efetividade da ação estatal, pois o executor do serviço se vincula à Administração Direta, por outro, concentra-se o risco da atividade nas mãos do Estado. Daí porque a técnica da atuação administrativa na prestação de serviços públicos pressupõe a robustez orçamentária necessária a suportar essa iniciativa.


Outra decorrência desse modelo é que a articulação entre pessoas públicas não é regida pela lógica negocial (da qual o contrato é a expressão mais evidente). Assim, embora possa haver figuras símiles às concessões, como será detalhado abaixo, a relação intra-administrativa não se explica a partir da lógica econômica, como ocorre quando a exploração envolve particulares. A lógica negocial impõe, antes de mais nada, que haja interesses jurídicos distintos que precisam ser remetidos a um programa comum, que se materializa no contrato (ou num ato com conteúdo econômico, como a permissão), que fixa os direitos, deveres e obrigações de parte à parte. Nestes casos, o contrato é o centro de gravidade da relação entre as partes e outorga direitos subjetivos ao contratado, que são plenamente oponíveis ao Estado.


Contudo, isso não se faz presente nos esquemas de relacionamento inter-administrativos. A razão é evidente. A Administração Indireta constitui-se, pela via legal, para servir à Administração Direta. Com efeito, as pessoas administrativas secundárias existem como veículos de materialização de funções de interesse público. Nessa perspectiva, os vínculos que se estipulam não são orientados com vistas a instituir uma relação cuja base é negocial. O elemento central é a relação de colaboração entre as figuras administrativas, que se organiza a partir de elementos distintos dos que estão subjacentes a uma transferência de atividade para a iniciativa privada . Claro que podem ser utilizados arranjos consensuais nesses casos, e usualmente o são. Contudo, eles são mera projeção do vínculo de colaboração que é subjacente à relação entre a Administração central e a periférica. Aliás, tanto isso é verdade que não se cogita de licitação para os casos de transferência inter-administrativa, podendo inclusive ser feita diretamente por lei.


O detalhe aqui é que nossa organização federativa impõe alguns temperamentos a esse processo. O primeiro deles é que a pessoa política que é titular da atividade apenas pode promover essa atribuição de serviços públicos a pessoas jurídicas a ela vinculadas . Afinal, ninguém pode dispor daquilo que não é seu. Nos casos em que a atribuição direta envolver pessoa políticas distintas, usualmente há um ato convenial que estipula as bases dessa colaboração, ou, ainda, uma situação de fato que pressupõe a necessidade de coordenação entre entes distintos da Federação. Com efeito, um interessante capítulo da gestão pública dos serviços públicos é a organização entre diferentes entes administrativos, que se instala pela via dos consórcios públicos que criam mecanismos de colaboração entre distintas pessoas políticas (cf. Lei 11.107/2005). Nessa perspectiva, além da atribuição dos serviços à própria administração, pode ser implementada em nível multi-federativo. Nesses casos, há uma partilha das responsabilidades de execução e de direção dos serviços entre mais de um integrante da Federação, criando-se um sistema assemblear de deliberações.


Essa técnica é de extrema relevância, pois permite a articulação entre diferentes instâncias administrativas, que em muitos casos é verdadeiramente fundamental para atuação efetiva em favor da coletividade. Diversos serviços públicos têm de conviver, por exemplo, com processos de conurbação, sendo necessário uma atuação articulada entre diferentes integrantes da nossa Federação, notadamente no que se refere às regiões metropolitanas. Outro ponto não desprezível desse processo é o dever que muitas vezes se apresenta de um ente federativo suplementar a atividade de outro, dotado de menores condições. Tendo em vista as desigualdades que marcam nossa Federação, fato é que muitas vezes devem ser instituídos elementos de colaboração entre diferentes esferas federativas com vistas a minorar desigualdades sociais. Também aqui esquemas de natureza consorcial se fazem importantes.


No que toca às pessoas encarregadas da prestação dos serviços, algumas considerações merecem ser feitas. Isto porque a manifestação mais elementar desse fenômeno de trespasse da gestão para pessoas administrativas deveria ser a atribuição de serviços públicos a autarquias. E seria natural que assim fosse. Na justa medida em que o serviço público é uma atividade administrativa em sentido estrito, nada mais próprio do que ser acometido legalmente a essa espécie de pessoa administrativa, que se destina a executar missões administrativas. Nesses casos, a lei transferiria a execução do serviço público para uma pessoa jurídica.


Contudo, o direito convive com a realidade, não sendo atualmente habitual a gestão de atividades de cunho econômico a autarquias. Usualmente, se utilizam nesses casos pessoas jurídicas de direito privado que se integram na Administração Pública (i.e empresas estatais). E isso leva a uma série de dificuldades conceituais bastante agudas no âmbito do nosso direito positivo. 13.


Em primeiro lugar, em regra, as estatais estão vocacionadas à prestação de atividades materialmente privadas, atuando de modo isonômico à inciativa privada, em vias de direito privado (cf. art. 173 da CF). A primeira tensão do modelo usualmente adotado para a prestação estatal de serviços públicos está na necessidade de acomodar o exercício de uma atividade pública por parte de uma estrutura que age sob regras organizativas e de atuação privadas. Isso conduz a uma necessária acomodação de regimes, com a institucionalização de diversas soluções ad hoc . O tema escapa, contudo, à análise, aqui proposta.


Segue-se a isso a dificuldade nos esquemas de atribuição havidos entre o titular da competência para prestar a atividade e a estrutura que a prestará efetivamente. Com efeito, usou-se chamar de concessão diversas transferências inter-administrativas, organizadas a partir de diversos esquemas, sem que isso corresponda a qualquer delegação à iniciativa privada em sentido próprio. Instituíram-se diversas “concessões impróprias”, como as chamou Marçal Justen Filho, em que não existe efetivamente uma relação econômica privada entre um particular e o Estado a organizar as relações. 14 Com efeito, na prática a análise de situações envolvendo a prestação de serviços públicos por meio de estatais exige uma análise específica de cada situação, fundada em cada uma das hipóteses a ela subjacentes.


Assim, em suma, a transferência de atividades à Administração Indireta é uma técnica que incrementa a efetividade da capacidade de o Estado ingerir sobre a atividade, pois não se interpolam interesses privados entre a formulação política e a prestação do serviço público. Em especial, os potenciais conflitos são adjudicados mediante técnicas intra-administrativas. Contudo, e em contrapartida, a Administração não partilha os riscos da exploração, ficando sujeita às vicissitudes derivadas de uma exploração que muitas vezes envolve elementos de mercado (risco de inadimplência, de demanda, obsolescência, etc.). Mais do que isso, nesses esquemas as atividades devem ser financiadas com recursos públicos, sendo que a capacidade de investimento do Estado impacta diretamente sobre a viabilidade fática desses modelos.


No plano da articulação entre os diferentes entes, o que se têm é que o vínculo é de colaboração entre pessoas administrativas, não obedecendo a uma lógica econômica, como se dá no caso de transferência para entes privados. Daí que a atribuição da atividade pode se dar dispensando vias contratuais (embora possam se apelar a esquemas consensuais para dar mais estabilidade ao vínculo).


Outro ponto de interesse dentro dessa lógica é, muitas vezes, prever que a delegação da gestão de atividades públicas se dê considerando a articulação entre diferentes esferas federativas. Não raro o efetivo atendimento dos interesses públicos deve coadjuvar mais de um ente federativo, como ocorre, v.g. em regiões metropolitanas ou quando há a necessidade de assistência a um ente federativo que necessita de auxílio. Nessas hipóteses, é o consórcio público a técnica mais adequada para permitir essas articulações federativas.


Já quanto às figuras da Administração Indireta usualmente encarregadas da prestação de atividades qualificadas como serviços públicos, habitualmente esse encargo recai sobre as estatais, que atuam em regime de direito privado. Isso implica uma dificuldade de estipular o regime jurídico dessas empresas, pois elas desempenham atividades materialmente públicas, o que pode conduzir a certas necessidades de deflexão do regime privado, assim como torna de difícil qualificação o título de outorga da atividade a elas. Usa-se qualificar a relação como sendo uma concessão imprópria, na justa medida em que o vínculo não é negocial no sentido próprio do termo, o que destaca o elemento colaborativo já apontado acima.


4. A prestação de serviços públicos pela iniciativa privada.


Vistos os modos pelos quais a prestação do serviço incumbe a pessoas administrativas, isto é, persiste sendo a execução uma responsabilidade pública, cumpre examinar as hipóteses de delegação da atividade para a exploração pela iniciativa privada.


Nada obstante o serviço público tenha sido, por força da pujança do Estado de Bem-Estar Social, celebrizado como uma atividade prestada pelo Estado (i.e. mediante a atuação da Administração Pública Direta ou Indireta), fato é que esta correlação não é necessária. Com efeito, desde sua formulação originária, o serviço público não equivale a uma atuação direta do Estado , mas sim a um peculiar modo de organização de certas atividades que atingem interesses coletivos. Deste modo, sempre foi possível cogitar da presença de particulares no que se refere à execução material dos serviços públicos. E os procedimentos de delegação são as vias pelas quais os particulares assumem para colaborar com a Administração.


Nesse sentido, é significativo o arrêt Terrier de 1903, que assinala a emergência no seio do Conselho de Estado da categoria dos serviços públicos, em detrimento dos “atos de autoridade”. Nesse arrêt se julgava o caso de um exterminador de víboras que, agindo a partir de um contrato passado com um Conselho Regional, se dedicava ao abate destes animais e reclamou da ausência de pagamento pelo seu trabalho. Segundo estatuiu o Conselho de Estado, essa situação implicava a criação de um serviço público, nada obstante a atuação não fosse diretamente realizada pelo Estado, mas sim por um particular. 15 Segundo a enunciação de Romieu, para a afirmação de um serviço público, seria indiferente se a Administração agisse pela via contratual ou por meios de autoridade. Nessa perspectiva, perceba-se que a atuação direta do Estado não é um elemento essencial à ideia de serviço público. É perfeitamente possível haver serviços públicos, sem que o Estado os preste diretamente.


Por outro lado, do ponto de vista doutrinário, o serviço público não se afirmou como uma atividade desenvolvida pelo Estado, mas sim por ele garantida. Nesse sentido, Duguit caracterizava o serviço público como: “toda atividade em que sua satisfação deva estar regulamentada, assegurada e controlada pelos governantes, porque a satisfação dessa atividade é indispensável a realização e ao desenvolvimento da interdependência social e que ela é de tal natureza que ela não pode ser completamente garantida, senão pela intervenção da força governante”. 16 Do mesmo modo, Jèze, ao estipular as bases do que hoje conhecemos como serviço público, não se inclinou a identificá-lo como atividade prestada pela Administração. O referido autor anotou sobre o tema que “A Administração não é encarregada sozinha da satisfação de objetivos de interesse geral. De fato, apresenta-se com muita frequência que um particular, uma associação de indivíduos consagre sua atuação à realização de certos serviços públicos”. 17 Por outro lado, o autor reconhecia o instituto da concessão como integrando os modos de prestação possíveis em matéria de serviço público. 18.


Novamente, percebe-se que o elemento central para a caracterização de um serviço público não está na prestação direta da atividade, mas sim na sua titularidade do ponto de vista jurídico, que se convola no controle da atuação particular com vistas à obtenção dos objetivos públicos assinalados. Aliás, tanto isso é verdade que a concessão foi uma técnica comum no período da afirmação dos serviços públicos.


No que se refere à nossa doutrina, a orientação também é a mesma, qual seja, permitir que a prestação da atividade se dê de modo indireto. Nesse sentido, manifestam-se nossos juristas mais destacados, valendo a citação de Celso Antônio Bandeira de Mello que registrou que “É o fato de corresponder [o serviço público] a uma necessidade de interesse geral, é a circunstância de se impor como uma exigência da coletividade, cuja satisfação incumbe ao Poder Público prover, ainda quando não o faça diretamente , o elemento que se encontra por detrás de todas as noções objetivas de serviço público”. 19.


O contexto histórico-doutrinário exposto acima, ainda que a título de mera referência, vai em uma direção clara. Os serviços públicos comportam a colaboração privada para sua realização . A responsabilidade do Estado está no dever de garantia a ele imputado, e não se exprime necessariamente pela atuação direta no âmbito da execução. 20 É dizer: serviço público e prestação estatal são elementos que, desde a formulação originária do conceito, não se equivalem. O conceito de serviço público não diz respeito, portanto, a quem presta a atividade do ponto de vista material, mas sim à incidência de um especial regime que permite que o Estado, pelas vias administrativas correlatas, possa dirigir o seu exercício. A titularidade estatal sobre a atividade, portanto, permite a transferência de gestão. E isso traz uma consequência bastante relevante, qual seja: historicamente, a delegabilidade integra o próprio conceito de serviço público, pois ela constitui uma das maneiras pelas quais pode se cogitar de sua concretização . Certamente não é devido a um acaso que as obras seminais acerca do tema sempre se engajaram em tratar de capítulos destinados ao estudo da colaboração entre particulares e o Estado na prestação das atividades públicas.


Por outro lado, de nada adiantaria tratar da historicidade da delegabilidade se ela não tivesse eco no direito positivo. Todavia, a possibilidade de transferência dos serviços públicos é acolhida pelo ordenamento jurídico . Nessa perspectiva, é da nossa tradição admitir que atividades descritas como serviços públicos possam ser delegadas à iniciativa privada, que as explorará segundo uma lógica que integra os pressupostos inerentes à natureza pública da atividade com as exigências da atuação privada, que reclama um mínimo de autonomia.


E o melhor exemplo disso é nossa própria Constituição que associa de modo direito serviços públicos com sua delegabilidade. Como registra o art. 175, caput, da Constituição, nada obstante os serviços públicos serem uma responsabilidade que incumbe ao Poder Público, sua prestação pode se dar “diretamente ou sob regime de concessão ou permissão”. Assim, a indelegabilidade é excepcional e deve estar prevista no próprio texto constitucional, pois só ali pode se contornar o comando do art. 175, caput . No mais, a opção de prestar diretamente ou delegar a execução da atividade é decisão a cargo dos administradores, segundo sua conveniência e oportunidade.


É dizer: serviços públicos são, em regra, delegáveis. A opção por transferir a gestão ou não é uma decisão política. Daí a necessidade de se ter em mente as vias jurídicas pelas quais esse processo pode ser implementado e quais os seus pressupostos estruturantes.


Todavia, essa característica não degrada o caráter público da atividade. A delegação de serviços públicos implica apenas uma transferência de gestão e não afeta a titularidade estatal . Mesmo colocada sobre a execução de um particular, fato é que a atividade persiste sendo pública e, portanto, sujeita a um especial vínculo entre o Estado e a atividade desenvolvida.


A característica mais destacada disso é a incidência de um regime que assegura que a direção da atividade persiste sendo acometida às autoridades públicas, o que se convola numa espécie de controle da atuação dos particulares, cuja atuação deve se conformar às diretrizes expedidas pelo Estado. Usualmente, a proteção que se concede aos particulares aqui é de natureza contratual e se traduz na proteção do equilíbrio econômico-financeiro do vínculo. Logo, a mutabilidade é característica que usualmente se associa ao processo de delegação, sendo o ponto alto dessa concepção a possibilidade de o Estado encerrar o vínculo de delegação mediante decisão unilateral sua, fundada exclusivamente em sua conveniência e oportunidade.


Por meio de procedimentos de delegação o particular assume uma posição que é pública e, portanto, representa o Estado nas relações que são travadas com os usuários de serviços públicos. Nessa medida, fica sujeito a obrigações tipicamente públicas (dever de prestar informações, de respeitar o due process of law , etc.), podendo assumir prerrogativas públicas (restringir direitos, promover expropriações, etc.).


Com efeito, o processo de delegação de uma atividade pública transfere parcelas de atribuições públicas . O faz, todavia, de modo temporário e parcial. A transferência se faz limitada no tempo, sob pena de se convolar numa demissão de atividades públicas por ato próprio da Administração. É feita, ainda, de modo parcial, pois nem todos os poderes são transferidos, mas sim os atinentes à gestão. A Administração, juridicamente, sempre permanece com a possibilidade de definir as condições de prestação da atividade. 21.


De todo modo, cumpre registrar que procedimentos de delegação não são neutros do ponto de vista da gestão. A transferência para um agente privado de atividades públicas interpola interesses privados na relação administrativa . E tais considerações impactam no modo de gestão da atividade por parte do Estado. Em termos simples, o particular tende a ser protegido no que se refere às suas expectativas patrimoniais. Nesse modo, a direção da atividade por parte do Estado tem que conviver com a circunstância de haver direitos legítimos dos particulares que deverão ser respeitados. E isso implica, muitas vezes, a perda da capacidade de dirigir livremente a atividade, em vista dos efeitos patrimoniais correlatos. As competências normativas abstratas, que preveem a direção livre da atividade por parte do Estado, experimentam limites materiais, derivados do caso concreto.


Muitas vezes, do ponto de vista material, os direitos do particular inviabilizam a adoção de certas medidas, como se vê com especial clareza no caso da encampação, em que o valor da indenização muitas vezes refreia a vontade política de retomar o serviço.


De todo modo, fato é que todos os processos de delegação de atividades públicas se caracterizam pela circunstância de que a atividade permanece sendo pública , isto é, afetada a uma especial responsabilidade do Estado em garantir o acesso a ela em termos reputados socialmente adequados. Logo, sempre permanecerá uma reserva de atuação em favor do Estado no que se refere às atividades delegadas, que autoriza a sua atuação sobre o particular. Contudo, esse elemento é compatibilizado com a necessidade de se dar autonomia empresarial ao particular, que explora o serviço como uma atividade orientada a lhe gerar lucro. E quanto mais o lucro estiver afeito à gestão do particular, mais intensa será a transferência de riscos levada a efeito do Estado para a iniciativa privada, que está subjacente à concessão. Eis a essência da ideia de transferência da exploração “por conta e risco”.


A assunção da execução de um serviço público por parte de um particular, portanto, sempre se dá considerando determinado intuito lucrativo. Como anota com propriedade Egon Bockmann Moreira – “Nas concessões e permissões, ao mesmo tempo que a gestão do serviço público se torna privada, nela se insere o objetivo do lucro. (. ). As concessões e permissões versam sobre serviços públicos que possam efetivamente gerar vantagens econômicas ao prestador. A atividade empresarial concessionária é empresa produtiva, com estilo autônomo de gestão referente ao serviço ou obra concedido”. 22.


Com efeito, ao explorar a atividade o particular pretende se remunerar do investimento que faz e pelo risco por si assumido. O vínculo que se estipula, portanto, é timbrado pela presença de interesses legítimos do particular. E isso impacta de modo relevante na relação entre Estado e particular, no caso de a ele ser atribuída a gestão de uma atividade de serviço público. Isso porque exige-se, e a Constituição é clara nesse sentido (tanto no que se refere ao equilíbrio econômico financeiro, art. 37, XXI, quanto ao disciplinar a expropriação, art. 5o, XXIV), que as expectativas patrimoniais legítimas sejam prestigiadas. Note-se que se dá uma partilha de riscos entre o Estado e o particular. A assunção dos riscos assim como os investimentos realizados legitimam que o particular perceba remuneração advinda da exploração que exerce, sendo esse o elemento central da ideia de transferência da atividade para o particular. 23 Nalguma medida, seja pela tarifa, seja por remuneração percebida do Estado no caso das Parcerias Público-Privadas, a remuneração do particular dependerá de ter assumido a gestão da atividade. Logo, para o particular a exploração de uma atividade estatal se faz como instrumento de busca de lucro. Lucro esse que pode ser percebido pela cobrança de tarifas diretamente dos usuários ou, ainda, mediante o recebimento de contraprestações pagas pelo Estado. Hoje já não se faz mais necessário que os serviços públicos sejam passíveis de individualização quanto à sua fruição para que sejam delegados à exploração privada. A Lei 11.079/2004 ao instituir a parceria público-privada como modalidade de concessão, superou a exigência de que os serviços fossem fruíveis em caráter uti singuli .


Com efeito, as graves questões relativas à capacidade de orientação do Poder Concedente e às atribuições do particular precisam então ser mediadas por um documento que institucionalize os direitos, deveres e obrigações de parte à parte. Daí a importância de um instrumento (notadamente o contrato) promover o ajuste fino dessas circunstâncias, ainda que dentro de certas balizas normativas pré-definidas legalmente (especialmente as Leis 8.987/1995 e 11.079/2004).


Por outro lado, esse instrumento de organização da relação entre o titular da atividade e o particular é de natureza constitutiva e translativa, pois outorga um direito que não existe na esfera jurídica do agente privado, assim como transfere – em termos limitados – prerrogativas que originalmente eram do titular da atribuição. 24 Desse modo, somente configuram efetiva transferência de atividades tidas como serviços públicos as hipóteses em que uma atividade estatal tem sua gestão, formalmente, transferida do Estado para um particular. É essa nota de trespasse fundamental para separar a delegação de serviços públicos de figuras similares, notadamente a autorização .


Com efeito, o que hoje vem se chamando de autorização no âmbito de atividades que têm uma evidente nota de interesse geral não configura uma transferência de atividade própria do Estado. Nesses casos, o que há é a existência de zonas de atuação privada em atividades que anteriormente constituíam-se como serviços públicos. Nesses casos, a autorização não é um título translativo, mas sim um ato que reconhece a possibilidade de o particular explorar uma atividade que lhe é acessível, pois sujeita ao regime de liberdade de empresa, ainda que sob um regime de intensa regulação. 25 Com efeito, muitas vezes a autorização tem sido utilizada como elemento para implementar pressões concorrenciais sobre os operadores de serviço público, passando o autorizatário a atuar a latere do operador do serviço público.


Nessa quadra, no que se refere aos títulos efetivamente translativos de serviços públicos, há a concessão e a permissão. Cuidam-se de títulos jurídicos expressamente previstos com tal finalidade pelo art. 175 da CF. Nada obstante sua menção no texto constitucional, cumpre assinalar que a Constituição não os define, encontrando-se na prática administrativa brasileira diversos institutos específicos recondutíveis às referidas categorias. 26.


Nessa perspectiva, cuidam-se de conceitos gerais que contemplam diversas possibilidades de transferência de atividades estatais (p. ex. a concessão que conhece, quando menos, três espécies básicas: a comum, a patrocinada e a administrativa). O que há de comum a ambas as figuras é que elas transferem atividades estatais, por prazo determinado, por meio de licitação. Por meio dessa transferência, o particular assume a gestão de uma atividade pública com vistas à busca do lucro, gerindo-as em nome e por conta do Estado. Cuida-se, em ambos os casos, à toda evidência, de uma relação complexa em que atos infralegais devem organizar a relação entre as partes, determinando os direitos, deveres e obrigações de parte à parte.


Ademais, nos dois casos há a necessidade de se protegerem as expectativas patrimoniais legítimas dos particulares, de modo que se impõe a preservação do equilíbrio econômico-financeiro da avença. Em suma, nada obstante historicamente a permissão ser instituto dotado de precariedade, fato é que esse instituto muito se aproxima da concessão, sendo difícil segregar ambos nos dias de hoje.


Quanto à concessão, dúvidas não há de que ela configura uma forma de contrato cujo objeto é a transferência de uma atividade estatal e dos elementos necessários para que o particular possa promover os objetivos públicos a que se obrigou. O tema é tratado em nível federal pela Lei 8.987/1997, pela 9.074/1996 e pela 11.079/2004. A estruturação desse contrato investe o Estado na condição de poder concedente e o particular na de concessionário, assumindo as posições jurídicas correlatas. Estatutariamente, as leis que regem o tema atribuem direitos, prerrogativas e obrigações a ambas as partes. Isso sem prejuízo das regras instituídas pelo próprio contrato que serve de importante elemento para organizar a relação entre as partes. O contrato institui uma situação complexa que deve ser objeto de atenção por parte do Estado, pois a promoção das finalidades públicas desejadas foi posta a cargo do particular, que, portanto, tem seus interesses funcionalizados em vista a esses objetivos. Essa especial relação vai exigir que haja uma comunhão de esforços constante e perene para que haja a promoção dos objetivos desejados. À modo de um contrato associativo, a concessão exige que as partes signatárias sempre ajustem sua relação, tendo em vista as diversas vicissitudes que atingem a execução de uma atividade complexa por um longo período de tempo. 27.


Com efeito, a incompletude do contrato – que é incapaz de prever todas as circunstâncias afeitas à sua execução – instala um dever de colaboração entre as partes signatárias. Assim, a boa gestão da avença transcende uma defesa serrada das posições dos signatários e exige que haja um constante diálogo entre si.


Já a definição da permissão é um pouco mais tormentosa. 28 Historicamente, a permissão constitui um ato precário utilizado para permitir atuações episódicas de particulares na prestação de atividades públicas. Contudo, sua utilização nesses termos não se amolda às exigências da prestação de serviços públicos que demandam investimentos e estabilidade. Precariedade é tudo que não se espera de um vínculo dessa natureza. Assim, malgrado a Lei 8.987/1995 caracterize o vínculo como precário (art. 2º, IV) e o qualifique como um contrato de adesão (art. 40), essas expressões têm que ser interpretadas em linha com os objetivos da Lei e com as exigências da Constituição.


Com efeito, como assinalado anteriormente, em termos práticos a distinção entre concessão e permissão perdeu o sentido, pois independente da maneira pela qual se institui o vínculo, os interesses legítimos do particular deverão ser prestigiados. Assim, não se poderia conceber a permissão como ato precário em sendo ela o resultado de um procedimento de efetiva transferência de atividades privadas para particulares, dotadas do mínimo de estabilidade. Assim, na perspectiva de análise que interessa aqui (prestação de serviços públicos por particular), a concessão será qualificada como não sendo precária. E não se cuida de fazer ouvidos mocos à lei, mas sim de reconhecer que a aposição de um prazo de vigência ao instrumento de delegação tem sentido, assim como protegem-se os investimentos privados realizados em atividades públicas (que não podem ser expropriados).


Nessa perspectiva de estabilidade é que faz sentido a referência de a concessão ser um contrato, ainda que de adesão. É dizer: se houver prazo e a transferência for dotada de estabilidade, sendo o resultado de um procedimento licitatório, haverá contrato. Ato só poderá haver se cuidar-se de uma delegação pontual e episódica, que não exija elementos de estabilidade. Contudo, se assim for, em verdade, não se estará transferindo a gestão do serviço. Daí porque ser correta a posição de Marçal Justen Filho ao aludir que a solução para a questão da permissão só pode ser feita apelando à análise da circunstância concreta. 29 E nessa perspectiva é irrecusável aceitar que em termos práticos a distinção da concessão e da permissão é mais de nomenclatura do que de substância.


Por fim e apenas para arrematar, indica-se que a adoção de modelos de transferência para a iniciativa privada não anula a responsabilidade estatal. Nada obstante nesses casos um particular se interpole entre a sociedade e o Estado e seja, portanto, imputável pelos seus atos (objetivamente inclusive), o Estado ainda é responsável final pela atividade. 30 Assim, a par da responsabilidade subsidiária por eventuais danos causados, fato é que podem ser deduzidos pleitos diretamente em face do Poder Concedente por falhas inerentes à concepção do serviço. Isso é corolário inafastável da concepção de que o que se transfere é a gestão da atividade e que isso não implica, substancialmente, uma privatização.


Organizadas as coisas, tem-se, portanto, que um grande capítulo relativo à prestação dos serviços públicos é sua delegação a agentes que não integram a estrutura administrativa. Isso se faz transferindo atribuições públicas e a gestão da execução, feita “por conta e risco do particular”. Tanto se faz, por prazo limitado, sob pena de se configurar uma privatização disfarçada. Nessa perspectiva, o Estado mantém a capacidade de ingerir sobre a atividade. Contudo, isso passa a ser influenciado pelos interesses patrimoniais de um sujeito privado, que devem ser respeitados. Especialmente porque os particulares exploram serviços públicos com o intuito de lucro, e suas expectativas econômicas legítimas devem ser preservadas (assim como os investimentos realizados).


Quanto aos instrumentos de transferência propriamente ditos, eles podem ser remetidos a dois arquétipos constitucionais: a concessão e a permissão. Cumpre a lei dar os contornos a esses institutos, sendo que hoje no Brasil há legislação federal que cumpre esse encargo. Da sua análise percebe-se que o regime da permissão e da concessão é, na sua feição, essencial parelho, o que, inclusive, retirou a utilidade do conceito tradicional de permissão como ato precário. Por fim, ressalva-se que a decisão de transferir a atividade não atenua as responsabilidades do Estado, que continua sendo imputável pelo dever de ofertar os serviços públicos, ainda que, em havendo sua delegação a privados, num primeiro momento estes respondam diretamente perante à sociedade.


5. Advertência final.


As informações reunidas aqui têm o objetivo de apresentar discussões relativas às formas de prestação dos serviços públicos. O fio condutor da exposição foi, portanto, destacar os modelos admitidos para que o Estado desempenhe uma competência que lhe é acometida que tem nítido caráter prestacional. Por evidente, para falar do assunto o tema tangenciou diversos tópicos que por si só dariam ensejo a monografias de fôlego. Contudo, a bem da operacionalidade do verbete e considerando a extensão horizontal de um projeto enciclopédico, prestigiou-se a organização das informações de modo a que o leitor reúna umas primeiras ideias acerca do tema, podendo aprofundá-las nos demais verbetes e obras de referência.


O objetivo foi destacar as diferentes racionalidades associadas à possibilidade de um serviço público ser explorado diretamente pela Administração, integrando-se a execução material da atividade no hemisfério público do direito e a sua transferência a um agente propriamente privado. Ambos os fenômenos evidentemente mediados pela legalidade.


Ao fim, e para não repetir o que já fora dito, é importante destacar que o direito brasileiro contempla diferentes soluções no que se refere à execução material de atividades em prol da coletividade. A efetiva opção por quaisquer das soluções admissíveis implica juízo político. Nossa ordem jurídica é flexível e permite projetos mais integrados ao Estado ou em maior colaboração com a iniciativa privada. O ponto estável é que o serviço público é um dever do Estado e deve ser prestado em condições adequadas à coletividade. É essa nota de atendimento concreto às necessidades sociais o verdadeiro núcleo da ideia de serviço público, sendo as técnicas de prestação ancilares à concretização desse resultado.


Notas.


1 Para uma exposição detalhada acerca da evolução do conceito e ainda das controvérsias acerca da sua definição, consulte-se MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Natureza e regime jurídico das autarquias , pp. 139-173.


2 Idem , p. 1.


3 O serviço público não é a única manifestação prestacional da Administração, que pode se valer de vias indiretas, tais quais as previstas na atividade de fomento. Todavia, o serviço público se caracteriza por imputar um dever de gerar a oferta efetiva de certas atividades em prol da coletividade, o que lhe aparta de outras manifestações prestacionais.


4 GONÇALVES, Pedro. A concessão de serviços públicos (uma aplicação da técnica concessória) , p. 32.


5 Sobre o tema da perda de clareza da divisão público/privada no direito administrativo, consulte-se GUIMARÃES, Bernardo Strobel. O exercício da função administrativa e o direito privado . Disponível em: .


6 Segue-se aqui a proposta de Pedro Gonçalves que analisa o tema sob os “modos de gestão pública” e “modos de gestão privada” [ A concessão de serviços públicos (uma aplicação da técnica concessória) , pp. 38-39]. Ressalva-se, contudo, que o autor trata na gestão a delegação para empresas controladas pelo Estado, no que não o acompanhamos na presente exposição, pois deu-se ênfase ao elemento orgânico subjacente à Administração indireta.


7 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Prestação de serviços públicos e administração indireta , p. 03.


8 Apenas por hipótese mesmo que se crie um novo serviço público se imputando ele diretamente a pessoa integrante da Administração Indireta, ainda assim isso seria uma atribuição de responsabilidade à pessoa política a que a pessoa que recebeu a delegação está vinculada, pois a Administração indireta não tem existência autônoma, ela sempre será uma projeção do Estado em si considerado, um instrumento para a consecução de fins públicos.


9 Registra-se aqui a opinião de Marçal Justen Filho para quem há três modalidades de transferência de gestão de atividade. Ainda que o autor faça menção à concessão a rationale pode ser expandida para a generalidade das situações. Segundo o autor há a concessão propriamente dita, em que um particular alheio à estrutura da Administração assume a gestão da atividade por sua conta e risco. Há ainda a concessão imprópria, em que se transfere a atividade para criatura administrativa. Nesses casos não se cria uma oposição de interesses entre a Administração direta e o concessionário, eis que integrados na estrutura do Estado. Por fim, há a concessão convênio em que a atividade é organizada articulando interesse de diversas pessoas jurídicas. (JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria geral das concessões de serviços públicos , p. 125).


10 Para uma resenha desse fenômeno de perda dos fundamentos originais do direito administrativo em face de mutações sociais e econômicas, consulte-se BOURJOL, Maurice. Droit administratif , pp. 43-53.


11 Registra-se, contudo, que uma tendência verificada nas relações administrativas é dotar os entes da Administração indireta de maior autonomia. A par das Agências Reguladoras contarem com um reforço institucional de sua autonomia frente ao Estado, atualmente o próprio setor empresarial do Estado veio a ter sua autonomia reforçada como se vê na Lei 13.303/2022.


12 A indicação de que o Estado deva promover os investimentos não equivale a afirmar que os serviços prestados pelo Estado devam ser ofertados gratuitamente. O Estado pode cobrar dos usuários mediante taxas ou tarifas pela utilização ou disponibilização dos serviços. Contudo, note-se que necessariamente devem ser promovidos investimentos anteriores à cobrança, o que sempre traz a necessidade de o Estado responder pela financiabilidade da atividade.


13 Sobre os estranhamentos desse modelo, consulte-se DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública , pp. 51-52. A autora chega a tratar a situação como sendo de duvidosa constitucionalidade, assim como revela que este modelo conduziu a “certas contradições na Constituição” (p. 51).


14 JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria geral das concessões de serviço público , pp. 117-129.


15 Sobre o caso e a interpretação dada a ele, está a se utilizar da obra de LAMARQUE, Jean. Recherches sur l’application du droit prive aux services publics administratifs , pp. 30-34.


16 DUGUIT, León. Manuel de droit constitucional , p. 73. Mais adiante esclarece o autor que o que se exige para que o serviço seja público é que ele seja organizado pelos governantes e que funcione sobre o seu controle, o que não implica que a estrutura de prestação esteja sob a dependência imediata e direta dos governos. Dentre os modos pelos quais pode haver essa divisão, se coloca segundo o autor a concessão (p. 77, tradução nossa).


17 JÈZE, Gaston. Les principes generaux du droit administratif , p. 36.


18 Idem , pp. 64-68. Interessante notar que Jèze já destacava a perda de importância da colaboração privada, que vinha sendo reinserida na atuação direta. Assim, fala o autor no desprestígio da concessão, se comparada com o passado.


19 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Natureza e regime jurídico das autarquias , pp. 153-154.


20 Ressalvados os casos de indelegabilidade previstos na Constituição e ainda aquelas atividades que, malgrado públicas, devem ser desempenhadas pela iniciativa privada. As presentes cogitações dizem respeito a situação geral dos serviços públicos, destacando que há situações sui generis .


21 Para aprofundar o elemento parcial da transferência, consulte-se CAETANO, Marcello. Subsídios para o estudo da teoria da concessão de serviços públicos. Estudos de direito administrativo , pp. 92-93.


22 MOREIRA, Egon Bockmann. Direito das concessões de serviço público , p. 26.


Com efeito, sem a vinculação da remuneração ao desempenho da atividade o que se tem é a mera transferência da execução da atividade por meio de um processo ordinário de contratação administrativa. E não a transferência da prestação da atividade, circunstância em que persiste a execução administrativa dos serviços.


23 Sobre o tema consulte-se: MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Concessões , pp. 121-132. Especialmente, registra-se que se acompanha aqui o autor no que se refere a não mais examinar os conceitos de translativo e constitutivo de modo apartado, sendo que ambos se integram nas concessões atuais.


24 Sobre o tema, JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria geral das concessões de serviço público , pp. 129-131.


25 Sobre a diversidade de figuras e o caráter da norma constitucional consultar MONTEIRO, Vera. Concessão , pp. 78-97.


26 Sobre essas circunstâncias, aprofundar em MOREIRA, Egon Bockmann. Direito das concessões de serviço público , pp. 37-46.


27 Sobre o tema consulte-se a resenha de MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo , pp. 776-787.


28 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo , pp. 840-849.


29 Sobre a responsabilidade do Estado na perspectiva dos danos causados na prestação dos serviços consultar: MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo , pp. 774-776.


Referências.


BOURJOL, Maurice. Droit administratif . Paris: Masson, 1972. 1 tomo.


CAETANO, Marcello. Subsídios para o estudo da teoria da concessão de serviços públicos. Estudos de direito administrativo . Lisboa: Ática, 1974.


DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública . 10. ed. São Paulo: Atlas, 2022.


DUGUIT, León. Manuel de droit constitucional . 4. ed. Paris: E. de Boccard, 1923.


GONÇALVES, Pedro. A concessão de serviços públicos (uma aplicação da técnica concessória) . Coimbra: Almedina, 1999.


GUIMARÃES, Bernardo Strobel. O exercício da função administrativa e o direito privado . 2011. 219 f. Tese de Doutorado em Direito do Estado. Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo. Disponível em: .


JÈZE, Gaston. Les principes generaux du droit administratif . Paris: Dalloz, 2004. 2 tomos.


JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo . 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022.


. Teoria geral das concessões de serviços públicos . São Paulo: Dialética, 2003.


LAMARQUE, Jean. Recherches sur l’application du droit prive aux services publics administratifs . Paris: LGDJ, 1960.


MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Concessões . Belo Horizonte: Fórum, 2022.


MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo . 31. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2014.


. Natureza e regime jurídico das autarquias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1968.


. Prestação de serviços públicos e Administração Indireta . 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983.


MONTEIRO, Vera. Concessão . São Paulo: Malheiros Editores, 2010.


MOREIRA, Egon Bockmann. Direito das concessões de serviço público . São Paulo: Malheiros Editores, 2010.


Citação.


GUIMARÃES, Bernardo Strobel. Formas de prestação de serviços públicos. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2022. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/85/edicao-1/formas-de-prestacao-de-servicos-publicos.


Edições.


Tomo Direito Administrativo e Constitucional, Edição 1, Abril de 2022.


Última publicação, Tomo Direito Administrativo e Constitucional, Edição 2, Abril de 2022.


Verbetes Relacionados.


Parcerias público-privadas: conceito Floriano de Azevedo Marques Neto Evolução da teoria do serviço público Dinorá Adelaide Musetti Grotti Regime jurídico das empresas estatais Alexandre Santos de Aragão Formas de extinção das concessões e seus efeitos Aline Lícia Klein.